O corpo da mulher como objeto da luta política obscurantista

Jeferson Miola      //
Ilustração: Aroeira      //            

Arthur Lira cumpriu o acordo com o deputado fundamentalista Sóstenes Cavalcante [PL/RJ] e pautou a tramitação do Projeto de Lei dos estupradores [1904/2024] em regime de urgência.

A horda fundamentalista da Câmara age com vilania, e transforma o corpo da mulher em objeto da luta política obscurantista para desgastar o governo.

Na nossa sociedade, fortemente caracterizada pelo machismo, misoginia e patriarcalismo, a mulher é subjugada e controlada, e o corpo feminino é objetificado.

O corpo da mulher é objeto do gozo e do prazer do macho que deve ser sempre satisfeito, independentemente do desejo e do consentimento dela.

Esta é a principal motivação para a ocorrência de um estupro de mulheres e meninas a cada 8 minutos no Brasil, segundo o Relatório Anual Socioeconômico da Mulher do Ministério das Mulheres.

O corpo da mulher também é objeto-alvo de violências masculinas perpetradas por homens que se consideram seus posseiros naturais e proprietários.

Esses “donos” das mulheres justificam, pasme, que podem matá-las por amor. Isso quando os hipócritas não reivindicam o direito de matá-las em defesa da honra.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde, o Brasil é 5º país do mundo em número de feminicídios, ficando atrás apenas de El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia.

Relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública registra 1.463 feminicídios em 2023 no país, o que equivale a 1 feminicídio a cada 6 horas.

Com a re-vitimização das mulheres e meninas vítimas de estupro, os autores do PL dos estupradores –21 deputados e 11 deputadas– reforçam a crueldade e o ódio contra as mulheres. E, supremo sadismo, objetificam o corpo da mulher para a luta política.

A deformidade moral e ética das autoras e autores do PL é de tal ordem que, diante da repulsa da sociedade à iniciativa, Arthur Lira, Damares Alves e Sóstenes Cavalcante propõem aumentar a pena de estupradores, mas não abdicam de re-vitimizar as vítimas do estupro com o castigo implacável da prisão.

Em 2018, na sabatina do juiz indicado por Donald Trump para a Suprema Corte dos EUA, a então senadora Kamala Harris, atual vice-presidente do país, perguntou: “Você consegue pensar em alguma lei que dê ao governo o poder de tomar decisões sobre o corpo do homem?”.

Esta é a pergunta. Por que, diabos, disciplinar, regular e controlar os corpos das mulheres, se Estados não disciplinam, não regulam e não controlam também os corpos dos homens?

Durante entrevista no programa Boa Noite da TV247, a advogada Gisele Ricobon mencionou trecho do Projeto de Lei dos estupradores que também havia chamado minha atenção, pois concede ao juiz uma impressionante subjetividade de interpretação da lei.

O PL define que “o juiz poderá mitigar a pena, conforme o exigirem as circunstâncias individuais de cada caso, ou poderá até mesmo deixar de aplicá-la, se as consequências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária”.

Isso pode significar, por exemplo, que o juiz poderá optar por não condenar a mulher à prisão, se entender que os danos causados pelo aborto forem tão prejudiciais e severos à mulher que já não vale à pena privá-la de liberdade, pois ela já estará castigada pelas consequências de aborto que muitas vezes é realizado em condições precárias, com sequelas definitivas e incapacitantes, por falta de uma rede de assistência digna e gratuita.

O espírito da Lei dos estupradores evidencia que o que importa mesmo é impor um castigo severo, uma punição implacável ao corpo feminino que interrompa a gravidez, mesmo nas situações previstas em Lei.

A mulher é objeto do poder masculino, patriarcal, racista e colonial. Este poder masculino-patriarcal pode dispor do corpo da mulher para ser abusado, violentado, sacrificado e encarcerado no altar do fundamentalismo religioso e do obscurantismo.

O fato de termos 52% da população nacional sob a ameaça de um poder legislador de maioria obscurantista e violadora de direitos é um grave indicador da fragilidade em que se encontra a democracia brasileira.