A responsabilidade da Prefeitura na catástrofe de Porto Alegre

Jeferson Miola   //
Ilustração: Nando Motta   //      
Pela sua condição paisagística, Porto Alegre fica exposta aos riscos que a cheia do Guaíba pode ocasionar.

Por isso, no final da década de 1960 do século passado, depois da maior enchente ocorrida até então –também num mês de maio, porém de 1941–, a cidade foi dotada de um eficiente sistema de proteção para evitar inundações.

O sistema é integrado por uma barreira física resistente de 2,6 km de extensão, 3 metros de altura e 3 metros de estrutura abaixo do solo, o Muro da Mauá, mais 14 comportas para fechamento de entrada de água, 68 km de diques de contenção e 23 casas de bombas para a drenagem de água das áreas mais baixas da cidade.

Uma verdadeira fortaleza, concebida para harmonizar a ocupação deste território pelos humanos de modo seguro e para proteger Porto Alegre de níveis de elevação do Guaíba até os 6 metros de altura.

A responsabilidade pela inundação ocorrida neste maio de 2024, derivada de um evento climático severo, não pode ser debitada diretamente nos atuais governantes da capital gaúcha e do Rio Grande do Sul, pois é consequência do colapso climático gerado pela devastação necro-capitalista que eles, com suas políticas nefastas, contribuem para aprofundar.

No entanto, a gravidade, as perdas humanas e prejuízos materiais, assim como a magnitude da destruição são, sim, da responsabilidade direta dos governos do Estado e, no caso de Porto Alegre, da Prefeitura Municipal.

No dia 5 de maio, o Guaíba atingiu o nível recorde de 5,33 metros, o maior da história. Um parêntesis: as causas para isso, mais além do volume de chuvas torrenciais ocorrido no período, estão associadas à exploração agrícola, especialmente voltada à produção de comodities, que ao longo da história agrediu severamente a natureza e alterou as condições dos afluentes do Guaíba, além de inúmeros outros prejuízos humanos, sociais, sanitários e ambientais.

Mesmo, porém, com tal nível recorde do Guaíba, a cidade ainda estaria bem protegida com o sistema de proteção de enchentes, concebido para suportar até 6 metros de altura das águas do lago.

A magnitude da devastação havida não foi só consequência da severidade deste fenômeno climático inédito, mas da falha da Prefeitura na gestão do sistema implantado há mais de 50 anos.

A desproteção da cidade é obra do condomínio de poder que se reveza na condução da Prefeitura há 20 anos, e que transformou Porto Alegre num laboratório de experimentos ultraliberais. O território da cidade foi convertido num campo livre para a exploração econômica inescrupulosa, segregacionista e ecocida do capital imobiliário em sociedade com as finanças e a mídia hegemônica.

O sucateamento do sistema de proteção da cidade foi uma política permanente desses sucessivos governos. Em 2018 o prefeito tucano Nelson Marchezan extinguiu o Departamento de Esgotos Pluviais, deixando a cidade sem um sistema de drenagem adequado.

A falha da estação de bombeamento de águas pluviais número 17 [EBAP-17], que causou inundação numa área da cidade em setembro passado, era conhecida desde 2018, conforme reportagem do Matinal News. Apesar disso, contudo, o governo do bolsonarista Sebastião Melo nada fez para solucionar o problema, mesmo com dinheiro em caixa, o que agravou a atual catástrofe.

Das 23 bombas que integram o sistema de proteção de enchentes, apenas seis estão funcionais, porque as demais 17 ou estão sem energia elétrica e não contam com geradores ou linhas de contingência, ou estão submersas – o que não deixa de ser tragicamente irônico.

Falhas administrativas elementares foram cometidas. Como, por exemplo, a falta de parafusos de pressão e de borrachas de vedação para o fechamento eficiente das comportas.

Com o objetivo de preparar a entrega do Departamento Municipal de Águas e Esgotos [DMAE] para grupos privados, as administrações direitistas e extremistas que se sucedem há 20 anos na Prefeitura promoveram a destruição contínua da inteligência técnica da cidade, de maneira que hoje o DMAE conta com apenas 1/3 da capacidade operacional que possuía até 2004

A responsabilidade do atual governo do Município é ainda agravada por outras negligências. Uma delas, a inação diante do sucateamento das comportas e bombas do sistema, realidade revelada durante as tempestades de setembro de 2023.

Com um agravante: durante a tempestade do ano passado, tanto o prefeito de Porto Alegre como o governador do Estado foram alertados por cientistas, meteorologistas, institutos de pesquisa e universidades sobre a ocorrência de novo fenômeno severo para este período, como de fato aconteceu.

Apesar disso, nada fizeram para corrigir as falências conhecidas e preparar um plano de contingência. É pior: em 2023 a Prefeitura não destinou um único centavo em investimentos contra enchentes e o governador destinou ridículos R$ 50 mil para a defesa civil.

As negligências, omissões e escolhas equivocadas da Prefeitura são inaceitáveis diante das características da paisagem e do relevo de Porto Alegre. A cota de alerta do Guaíba é de 2,5 metros, e a cota de inundação é de 3 metros.

Em 2015 e 2016, a cota do Guaíba atingiu respectivamente 2,94m e 2,65m – nível de alerta. E em setembro e novembro de 2023 alcançou 3,18m e 3,46m, segundo a própria Prefeitura. Apesar desses sinais eloquentes, o governo municipal manteve-se irresponsavelmente inerte e continuou sucateando o sistema de proteção de enchentes.

O povo gaúcho e porto-alegrense não só não mereciam como não precisariam passar por isso. As perdas, a destruição e os sofrimentos não foram causadas pela natureza ou por algum castigo divino, mas são responsabilidade direta do prefeito Sebastião Melo e do governador Eduardo Leite, que precisam ser responsabilizados no plano administrativo, cível e criminal.