Raquel Dodge trocou a Constituição pela bula inquisitorial

Jeferson Miola

Os argumentos sustentados por Raquel Dodge no despacho contrário à concessão de habeas corpus ao ex-presidente Lula não são encontráveis na Constituição brasileira, mas sim nas bulas inquisitoriais da idade média.

A escolhida por Michel Temer para chefiar a procuradoria da república incorreu, além disso, em tremenda contradição.

Ela reconheceu a ausência de prova cabal de culpa para condenar Lula, mas ainda assim recomendou o castigo extremo da prisão: “a execução provisória da pena de prisão não é desproporcional nem levará injustamente à prisão réu cuja culpa ainda não esteja satisfatoriamente demonstrada”.

Ora, se a “culpa ainda não está satisfatoriamente demonstrada”, como pode alguém ser condenado e, mais grave, ser preso?

Raquel Dodge argumentou também que a prisão sem o trânsito em julgado “é medida que observa a presunção de inocência, o duplo grau de jurisdição”; e que “a Constituição não exige terceiro ou quarto grau de jurisdição: exige apenas o duplo grau”.

Esta alegação manipula em absoluto a interpretação do texto constitucional, que em nenhum lado menciona o “duplo grau”, mas o trânsito em julgado, a sentença definitiva: “ninguém será culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” [inciso LVII do artigo 5º].

Em outro trecho, a procuradora usa um argumento que seria simplesmente hilário, não fosse trágico. Ela sustenta que a prisão após condenação em segunda instância “corrige a grave disfunção que acometia o sistema penal do país”.

Esta declaração, esvaziada de conteúdo jurídico, é recheada de uma falsa-moral redentora.

Em dezembro passado, ela mandou arquivar 24 processos de políticos protegidos pelo foro privilegiado. E no mesmo dia 24 de janeiro de 2018 em que o tribunal de exceção da Lava Jato perpetrou a farsa para condenar Lula sem provas, Raquel Dodge pediu o arquivamento do inquérito que investigava o tucano José Serra pelo recebimento de R$ 20 milhões de propinas da JBS.

O despacho contra a concessão do habeas corpus termina com uma dose cavalar de cinismo. Ela entende que conceder o habeas corpus a Lula “Também favorece a impunidade e põe em descrédito a Justiça brasileira, por perda de confiança da população em um sistema em que, por uma combinação de normas e fatores jurídicos, a lei deixa de valer para todos” [sic].

Na visão inquisitorial da procuradora-chefe escolhida por Temer, o preceito constitucional de que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” não vale para Lula.

4 comentários em “Raquel Dodge trocou a Constituição pela bula inquisitorial

  1. A prisão contraria não só a Constituição (“ninguém será culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” – inciso LVII do artigo 5º). Contraria também o Código de Processo Penal, que PROÍBE a prisão para cumprimento de pena antes do trânsito em julgado. Raquel Dodge cassa o artigo 283 do Código de Processo Penal, que proíbe a prisão, dizendo que é incompatível com a Constituição. Acontece que ela não é juíza e, até onde eu sei, o STF não anulou este artigo, simplesmente o está ignorando: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.” (Lei 12.403, de 2011).

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