Identitário não é quem defende pessoa negra no STF, mas quem naturaliza o status quo excludente

Jeferson Miola  //
Ilustração: Benett

É cada vez mais corriqueira a deturpação do conceito de identitário.

Aqueles que defendem a igualdade de representação de mulheres e pessoas negras em todos os espaços da sociedade, sobretudo nos espaços da política e do poder, são rotulados de maneira errada e depreciativa como “identitários”, como se a busca da igualdade fosse um pleito particularista em conflito frontal com a perspectiva universal de representação.

Em Emancipação e Diferença, Ernesto Laclau sustenta que “a brecha entre o universal e o particular é irreparável – o que equivale dizer que o universal nada mais é do que um particular que em algum momento se tornou dominante” [página 54].

As relações na sociedade são relações de poder entre diferentes grupos sociais. “Cada grupo é diferente dos demais e constitui em muitos casos essa diferença com base na exclusão e subordinação dos outros grupos”, explica Laclau.

Para o autor argentino, “se a particularidade se afirmar como mera particularidade, numa relação puramente diferencial com as outras, estará sancionando o status quo das relações de poder entre os grupos”.

Foi isso o que aconteceu no apartheid sul-africano, onde a particularíssima “superioridade” da elite branca minoritária foi evocada para subjugar e inferiorizar politicamente a esmagadora maioria negra.

Essa não é uma discussão meramente teórica, porque os efeitos concretos de regimes segregacionistas são devastadores: negam direitos fundamentais a todos; direitos que deveriam ser universais, como o direito de bem viver, de acesso à educação, à saúde, à vida digna, ao trabalho decente, ao lazer, à cultura, à participação política igualitária etc.

A exclusão de mulheres e negros é uma perversão que carrega muitas outras perversões. Esses segmentos, que são permanentemente bloqueados e sabotados, apesar de majoritários, são rotineiramente interditados para o exercício de postos proeminentes em todas áreas, sob o pretexto cínico e abjeto de que não têm conhecimento, experiência, formação, capacidade e blá blá blá …

Quando a igualdade de direitos é assegurada a todos integrantes da sociedade, a particularidade de raça, gênero ou de qualquer outra identidade se reconhece e, ao mesmo tempo, se dilui no exercício de uma cidadania universal, além de ricamente diversa e plural.

Não é isso, contudo, o que acontece no Brasil, uma nação marcada pelo apartheid racial e pela exclusão das mulheres. As maiorias sociais brasileiras –53% mulheres e 56% de pretos e pardos– são inferiorizadas politicamente, o que é uma mancha racista e misógina vergonhosa.

Esta vergonha estampa a fotografia da Câmara dos Deputados, composta por 91 mulheres, que ocupam apenas 17% das 513 cadeiras; e por 134 pessoas pretas ou pardas [26%], número que pode ser superestimado, considerando que muitos políticos se autodeclaram pardos na eleição por oportunismo e mau-caratismo.

Estudos acadêmicos sustentam que no ritmo de tartaruga do incremento de mulheres eleitas a cada eleição, o país levará mais 120 anos para alcançar a paridade de gênero no Congresso Nacional.

Portanto, é desonesto e ignorante taxar de identitário quem defende a representação universal e igualitária das maiorias –mulheres e pessoas negras– em relação às oligarquias dominantes brancas e masculinas que, apesar de minoritárias, exercem ferreamente o poder.

Identitário, no caso brasileiro, é quem pertence à minoria branca [44%] e masculina [47%] mas, mesmo assim, ao longo de mais de 500 anos continua impondo a supremacia da sua identidade enquanto poder dominante sobre as reais maiorias sociais.

O Brasil é um país feminino e negro. É o território do planeta que abriga a maior população afrodescendente existente fora do continente africano.

Essa é a verdadeira identidade do Brasil, e o traço constitutivo do povo brasileiro. A condição negra e feminina é o critério que confere universalidade à nação brasileira, não o supremacismo excludente e segregacionista.

É impossível pensar um Brasil antirracista, feminista, decolonial e moderno sem se avançar urgentemente na expansão acelerada de mulheres e pessoas negras ocupando postos de comando dos destinos do país.

A defesa, portanto, de que a ministra Rosa Weber seja sucedida por uma mulher, a primeira negra no STF, significa pedir para que o presidente Lula não ceda ao atraso e ao retrocesso. A essas alturas, manter as duas ministras dentre 11 ministros do STF é o mínimo aceitável.

E convenhamos: é difícil crer que dentre as mais de 56 milhões de mulheres negras do Brasil não exista uma única com mais de 35 anos de idade, com notório saber jurídico, com conduta ilibada e uma cosmovisão progressita. Francamente!